Bolsista: RODOLFO AMARAL DA SILVA
Orientador(a): Gisele Porto Sanglard
Resumo: O presente plano de trabalho tem por objetivo iniciar o aluno na pesquisa histórica, a partir de dois temas de pesquisa que vêm sendo desenvolvidos pela orientadora: pobreza, alimentação & saúde. Para tal, a aluna procurará caracterizar a pobreza urbana na cidade do Rio de Janeiro a partir da imprensa da época: quem eram os pobres? Quais os hábitos alimentares das crianças das camadas populares? – são algumas das perguntas que o aluno procurará responder.
Alimentação e saúde é um tema fulcral na assistência à pobreza, que ganha contornos específicos a depender de cada contexto histórico. Um prato de comida era, muitas vezes, o maior “remédio” para o indivíduo enfraquecido. A alimentação foi o ponto central da assistência oferecida pelos hospitais durante boa parte de sua história. O alimento era uma importante medida de recuperação da “saúde” do pobre que buscava o hospital para recuperar suas energias. O hospital era o lugar de buscar o alimento para o corpo (agasalho e comida) e para alma (religião) – tal vocação perdurou por muito tempo, mesmo quando o conhecimento médico começou a transformar o espaço hospitalar. A cozinha dos hospitais e sua adega eram grande preocupação para manter a ração necessária aos doentes. O vinho era importante na dieta hospitalar, muitas vezes diluído em água. Muitos hospitais mantinham sua própria vinícola para garantir a produção, como o Hôtel Dieu de Paris e o de Beaune, na Bourgonha. Na medicina hipocrática, e neohipocrática, o vinho era percebido como fundamental para ajudar que o doente recobrasse as forças ou mesmo para combater certas doenças, como a peste (Goubert, 2001).
Laurinda Abreu chama atenção que no Hospital do Espírito Santo de Évora, durante o período Moderno, a maior parte dos utentes estavam lá para recuperar as forças para aguardar a próxima safra (Abreu, 2014). O Alentejo, cuja capital é Évora, é uma região ainda caracterizada pela agricultura – novamente a cortiça, a azeitona e o vinho – e que atraía trabalhadores para durante a colheita. Como a autora demonstra, não era difícil que o imigrante aguardasse na cidade a próxima safra e, para os imigrantes, o hospital era o lugar de recuperar as forças. As doenças destes homens? Fadiga e má alimentação. A revista Food and History publicou em 2017 um número especial sobre a alimentação nos hospitais (Food and Hospital), organizada pelo historiador da medicina Jonathan Reinarz. Neste número Laurinda Abreu chama atenção para os discursos médicos sobre a alimentação infantil – questão presente desde o século XVIII (Abreu, 2017). Outro estudo relevante é o de Gianenrico Bernasconi, dedicado ao Ovomaltine, bebida à base de malte, ovo e cacau surgida na Suíça em 1904, como um produto fortificante e tônico. O historiador suíço chama atenção que seu surgimento se vinculou ao desenvolvimento da indústria farmacêutica e alimentar a partir da segunda metade do século XIX. Voltado para a alimentação infantil, o Ovomaltine se tornou, na década de 1920, uma bebida voltada para o homem esportista (Bernasconi, 2016).
É neste contexto do século XIX na Suíça que surgem diversos produtos lácteos voltados para a alimentação infantil, como o leite condensado e a farinha láctea. Produtos que garantiam uma boa conservação, pela grande quantidade de açúcares, e prometiam alimentar os filhos das classes trabalhadoras ou dos pobres urbanos. Ou seja, produtos que, quando lançados, visavam as camadas pobres da sociedade – foram pensados para resolver o que hoje é considerado como déficit alimentar de grande parte da população suíça. Deve-se levar em consideração que a Suíça era, no século XIX, um país eminentemente rural e com uma grande população pobre. Outro lugar onde a alimentação era muito importante eram os navios. Singrando os mares por muitos meses, garantir uma alimentação equilibrada e saudável era preocupação dos capitães. A reserva de grãos, carnes salgadas e mesmo vinhos e aguardentes e a porção individual que cada um teria (Rodrigues, 2020 e Nicolin, 1988) é uma fonte de informação importante para conhecermos a relação que se estabelece entre saúde e alimentação.
Para além da cozinha, as questões trazidas pelo hospital trazem um ponto importante para a reflexão aqui proposta – que é sua relação com o pobre e com a pobreza. Da mesma forma que o hospital deve ser entendido como um microcosmo da sociedade, sendo assim, entendido de acordo com o tempo e o espaço determinado; a pobreza também deve ser compreendida de forma similar. Ela é não é vivenciada e percebida de forma igual no tempo. Em cada momento histórico a pobreza, e seus efeitos, são percebidos de forma distinta. Como exemplo, a análise proposta por Laurinda Abreu sobre o papel do Hospital do Espírito Santo, em Évora, Portugal na Era Moderna. Papel certamente bem distinto daquele exercido pelo Hospital São José da Misericórdia de Lisboa ou mesmo o Hôtel Dieu de Paris.
Do ponto de vista da história da alimentação o século XIX trouxe mudanças importantes. É neste período em que a indústria alimentícia se desenvolve, deixando que alguns produtos ditos intermediários (farinhas, óleos, etc.), antes produzidos artesanalmente passassem a ser fabricados em grandes quantidades. Tal processo se mostrou importante em função da necessidade de alimentar as famílias de trabalhadores urbanos, pois como afirma Jean Louis Flandrin, na “sequência da Revolução Industrial e do êxodo rural, um número crescente de mulheres foi trabalhar na fábrica ou em escritórios, tornando-se menos fácil para elas combinar atividades profissionais e domésticas” (Flandrin, 2018: 701). Juntamente com a chamada “revolução agrícola” do século XIX, a indústria alimentícia contribuiu para a redução das sucessivas crises de fome tanto na Europa, quanto na América.
É nesse cenário que o leite e as farinhas ganham importância na preocupação de médicos no que tange à alimentação da criança.
Mas para isso era preciso resolver a questão da conservação dos produtos: os açúcares – inclusive o malte amplamente usado nas farinhas voltadas às crianças, tanto como conservante como fortificante, tal qual o caso do Ovomaltine já referenciado. No caso do leite, a questão do risco da contaminação bacteriana era maior, os vagões refrigerados e as técnicas de pasteurização não eram suficientes para garantir a não contaminação no transporte do leite. O leite condensado (açucarado) era o que melhor se conservava o que fez surgir diversas indústrias na Europa Central, notadamente Suíça e Alemanha, sendo a mais importante aquela fundada no Cantão do Vaud, na comuna de Cham, pelos irmãos Charles e George Page – a Anglo Swiss Condensed Milk, que em 1905 seria reunida na fábrica criada pelo químico alemão Henri Nestlé na cidade de Vevey, no mesmo cantão du Vaud na Suíça, dando origem a Nestlé and Anglo Swiss Condensed Milk Co. (Pedrocco, 2018).